O pré, o pós-pandemia e o desmonte do Brasil

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Por Vladimir Nepomuceno

Desde a posse do atual governo, em 2019, que entre os principais assuntos estão as reformas coordenadas por Paulo Guedes e sua equipe, que as chamam de estruturantes. Realmente, o nome tem a ver. O foco do conjunto de reformas é, sim, a estrutura do Estado brasileiro. Só que não se pretende reformar, no sentido de melhorar, modernizar. A proposta central é a total desestruturação do Estado brasileiro, a implantação do chamado Estado mínimo. Além da nomenclatura, a forma como esse debate é colocado pelo governo e pela grande imprensa dá a impressão para muitos que as ideias de reformas são do atual ministro e sua equipe. Os projetos são apresentados como se Guedes tivesse tirado da cartola uma ideia mágica para modernizar o Estado brasileiro. Mas, na verdade a história não corresponde ao que dizem seus defensores.

A partir da posse de Michel Temer para um mandato tampão de dois anos, os liberais, que contribuíram para a queda do governo de Dilma Rousseff, assumiram novamente o controle e se prepararam para a retomada da implantação da proposta neoliberal de Estado para o Brasil. Durante esse período alguns encaminhamentos foram traçados, entre eles a necessidade de investir no processo eleitoral de 2018, visando garantir a vitória de um candidato que desse continuidade ao processo iniciado no final dos anos 80 e interrompido em 2002 com o fim do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Seria necessário também eleger uma bancada parlamentar majoritariamente conservadora, liberal e, em alguns casos, suscetível a negociações nem sempre republicanas, onde os liberais ditariam a pauta.

Com discurso de renovação, apostando no desgaste do que se chamava de “velha política” (discurso adotado pelo então candidato, agora presidente eleito) o Congresso Nacional que saiu das urnas, segundo pesquisa e análise do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) é o que observamos no quadro abaixo, diferente da renovação divulgada pela grande imprensa:

Como resultado de pesquisa do DIAP, que traça o perfil das duas Casas legislativas na atual legislatura, podemos observar que o perfil do parlamento eleito atende o objetivo dos liberais. Vejamos.

Ainda no mandato de Temer, alguns projetos seriam encaminhados, ou pelo menos anunciados, podendo ser aprovados, ou testados para a legislatura seguinte.

As discussões contavam, já em 2016, com subsídios do BIRD (Banco Mundial), que serviam de base para as propostas da equipe do presidente tampão. Entre os principais pontos discutidos estavam: a) congelamento de gastos públicos; b) redução de despesas com servidores públicos; c) reformas trabalhista e previdenciária; d) privatização, redução ou fechamento de serviços, e) desmonte e venda de empresas estatais. Todos os pontos foram divulgados como parte da modernização do Estado pela grande imprensa, sem nenhuma cerimônia.

Foram definidas também questões relativas ao trato com o orçamento público para serem imediatamente encaminhadas, onde podemos destacar: a) redução de gastos públicos, com a imposição de um teto de gastos; b) LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) restritiva e com maior contingenciamento e c) LOA (Lei Orçamentária Anual) com fortes limites nas despesas primárias. Também ficou acertado que seria buscado reformar a constituição e a legislação infraconstitucional para pôr fim às vinculações orçamentárias, como saúde e educação, a desindexação de verbas, com o fim dos reajustes automáticos e o fim das despesas obrigatórias.

Pondo em prática o acertado, com o apoio de instituições financeiras internacionais e do BIRD, foram encaminhadas proposições legislativas ao Congresso, como a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 287/2016 – Reforma da Previdência, que, caso não fosse aprovada seria revista e reencaminhada logo no início do mandato do presidente eleito em 2018, como efetivamente ocorreu. Também foram encaminhadas, e aprovadas, a Emenda Constitucional 95/2016, congelando as despesas correntes públicas por 20 anos, mantendo os gastos de capital, a Lei nº 13.465/2017 – Reforma Trabalhista, ampliando a informalidade nas relações de trabalho, com redução de direitos trabalhistas e sociais e consequente queda da arrecadação previdenciária.

É sabido que incialmente o candidato à presidência dos neoliberais não era Jair Bolsonaro. Ao perceber que os representante do PSDB e do partido Novo, possíveis operadores da proposta neoliberal, não teriam chance, que Luciano Huck havia desistido de concorrer, os liberais decidiram se aproximar do candidato da extrema direita, que, além de não ter na época um nome para a área econômica, poderia permitir a atuação dos liberais na implementação de suas propostas de reformas. Assim, convenceram Bolsonaro a aceitar Paulo Guedes, que negociava inicialmente com Luciano Huck, a ser o responsável por sua área econômica. E assim foi.

Tão logo começaram os trabalhos no Congresso em fevereiro de 2019, o então novo governo encaminhou a proposta atualizada de reforma previdenciária (PEC 06/2019), posteriormente convertida na Emenda Constitucional 103/2019, concluindo a primeira fase da reforma previdenciária. Observa-se que seria impossível a equipe de Bolsonaro, ainda em fase de montagem durante o mês de janeiro de 2019, ter condições de, em menos de um mês, elaborar e apresentar o texto completo de uma proposta de emenda constitucional.

Ainda no primeiro ano de mandato do atual presidente, foi apresentado, com aparência de novidade, o programa de modernização do Estado, como mencionado no início deste artigo, o “Plano Mais Brasil, a transformação do Estado”, colocado em prática através de proposições encaminhadas ao Legislativo (PECs, PLs e MPs), além de muitos encaminhamentos infralegais. Uma simples análise mostra que o conteúdo do projeto é muito diferente do que diz o material de propaganda. A expressão “Menos Máquina, mais Social. Governo justo, eficiente e fraterno”, deixa clara a contradição do discurso. Menos máquina significa, na prática, a redução do que é público, de órgãos e empresas, de unidades de atendimento à população, além da precarização nas contratações para o serviço público. Isso dificilmente traria qualquer melhoria na área social.

Outro ponto que merece destaque é a continuidade da reforma trabalhista através da Medida Provisória 905/2019, que criava o contrato de trabalho verde e amarelo, além de outras alterações na legislação trabalhista, aprofundando a precarização das relações de trabalho. Essa MP perdeu validade por não ter sido votada dentro o prazo constitucional, devendo ser retomado o debate através de projeto de lei.

Ao defender a reforma na estrutura do Estado, o governo anuncia:

“Aumentar a capacidade de investimento do Estado e dar retorno para a sociedade

Reduzir a complexidade e implementar uma gestão que coloque o Serviço Público na vanguarda

Aproximar o Serviço Público do cidadão, uma vez que o Estado existe para servir à sociedade”

 

Como argumentos que justificariam a reforma, a equipe do Ministério da Economia alega:

“Número crescente de servidores

O sistema é obsoleto, disfuncional e difícil de administrar

O sistema é descolado da realidade do país

Remunerações incompatíveis com realidade do país”

 Na defesa de sua proposta a equipe do Ministério da Economia apresenta, entre outras coisas, um gráfico baseado em dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com projeção (sem base de cálculo que confirmasse o apresentado) feita pela própria equipe do ME. No gráfico o governo alega que, se não acontecer a reforma, “quase 1/7 do que o nosso país produz vai para pagar salários, benefícios e encargos da máquina”. Veja o gráfico:

No entanto, o que se observa ao buscarmos dados que possam confirmar as alegações o que encontramos é bem diferente do discurso do governo. Vejamos. A informação acima liga, principalmente, a despesa com servidores ao PIB (Produto Interno Bruto). Usando a relação despesa anual com servidores em relação ao PIB, publicado no Atlas do Estado Brasileiro, IPEA, o que se encontra é que a evolução real é diferente do alegado pelo governo:

Em relação ao que diz o governo sobre o número de servidores ser crescente, temos que lembrar que o número de servidores não pode ser analisado de forma absoluta, mas em relação à população a ser atendida por esses servidores e em relação ao conjunto dos trabalhadores do país. Vejamos a seguir a evolução do número de servidores entre 1986 e 2017, que é bem inferior ao setor privado. No mesmo gráfico podemos ver que a variação do número de servidores em comparação com a população economicamente ativa e mesmo com a população como um todo não confirma o discurso da equipe de Guedes.

Já no gráfico seguinte, um estudo publicado pela OCDE, instituição insuspeita segundo os liberais, mostra a comparação entre 31 países na relação de servidores com o total de trabalhadores. Como diz o site Infomoney, em matéria publicada sobre os dados da OCDE, “o percentual maior de servidores públicos nos países europeus pode demonstrar justamente a maior intervenção do estado na economia no sentido de prover emprego para uma massa de trabalhadores que não é absorvido pelo setor privado, devido a uma série de fatores, como por exemplo, o próprio desenvolvimento da economia.” Por que será que isso o governo não divulga?

A própria imprensa mostra a falácia de excesso de servidores públicos, o que, segundo o governo, justificaria a redução do quadro. Em matéria publicada em 4 de março de 2020, no caderno “Economia & Negócios” do jornal O Estado de São Paulo, mesmo considerando a soma de servidores estatutários e contratados pela CLT, a queda no contingente seria a maior em duas décadas, como pode ser visto abaixo.

Como parte do conjunto de medidas do programa “Mais Brasil”, foram editas três Propostas de Emenda à Constituição, as PECs 186/19, 187/19 e 188/19. A primeira chamada de “emergencial”, a segunda de “PEC dos fundos públicos” e terceira de “pacto federativo”. Todas as três constantes do acordo com o Banco Mundial. A proposta das 3 PECs era a redução drástica de direitos sociais e o aumento de direitos fiscais para o sistema financeiro. Para diminuir possível resistência na tramitação o governo burlou a norma constitucional que determina que todas as proposições de autoria do Executivo devem ser protocoladas na Câmara dos Deputados. Para isso, usou o artifício de entregar com a assinatura do líder do governo no Senado, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE), como se fosse ele o autor das três propostas. Sabendo que a parcela governista daquela Casa é muito maior proporcionalmente do que na Câmara, isso deveria facilitar a tramitação.

Ainda antes da crise gerada pela pandemia da covid-19, a política implementada pela equipe econômica do governo já dava mostras do que viria para a população brasileira. O crescimento da economia não acontecia, o ganho na arrecadação gerado pelo aumento na contratação de trabalhadores pela novas regras também não vieram, além do aumento no número de famílias desassistidas. O que só deve piorar no período posterior à pandemia.

Para o período posterior à calamidade pública o ministro da Economia já anuncia  pauta do governo, que deve conter a reforma administrativa, que já conta com uma frente parlamentar na sua defesa, objetivando o desmonte do serviço público, uma nova reforma sindical propondo a modificação da atual estrutura sindical, aprofundando o que já foi encaminhado através da Reforma Trabalhista. Lembrando que já tramitam a PEC 196/19, de autoria do deputado Marcelo Ramos (PL/AM) e o PL 5.552/19, de autoria do deputado Lincoln Portela (PL/MG), tratando, principalmente de alterações nas regras de financiamento e o fim da unicidade sindical.

Cumprindo compromissos assumidos com representantes do sistema financeiro internacional e o BIRD (vide no 6º parágrafo deste texto), também está na alça de mira do governo uma lista de objetivos a serem alcançados, como uma série de marcos regulatórios (que na verdade desregulamentam e privatizam), todos com sérios prejuízos para a população, como redução ou dificuldade na obtenção de serviços, além do aumento de preços, que são:

  1. Saneamento básico – já aprovado e sancionado pelo presidente;
  2. Óleo e gás – com pressão para votar urgente;
  3. Pré-sal – parada no Senado;
  4. Elétrico – apesar de aprovado de forma terminal na comissão, o senador Jean Paul Prates (PT/RN) conseguiu assinaturas suficientes para levar o debate ao plenário, ainda sem previsão de data;
  5. Petróleo.

Também são alvo a privatização de empresas, num número bem maior do que as quatro anunciadas por Paulo Guedes, que são:

  1. Correios;
  2. Telebras;
  3. CBTU – Companhia Brasileira de Trens Urbanos;
  4. Trensurb – Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre;
  5. ABFG Associação Brasileira Gestora de Fundos;
  6. Nuclebrás Equipamentos Pesados;
  7. Ceagesp – Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo;
  8. Ceasaminas – Central de Abastecimento de Minas Gerais;
  9. Codesa – Companhia de Docas do Espírito Santo;
  10. Serpro – Serviço Federal de Processamento de Dados, e
  11. Dataprev – Empresa de Tecnologia de Informações da Previdência.

As duas últimas da lista com a entrega de todos os dados econômicos, eleitorais, previdenciários e sociais da população brasileira para empresas privadas, muito provavelmente estrangeiras, que já se candidatam a compar.

Por fim, o governo se prepara para encaminhar um novo projeto de lei em substituição à MP 922/2020, que flexibilizava as regras para contratação de trabalhadores temporários para o serviço público federal e que perdeu a validade.

Por tudo o dito aqui, fica mais do que claro o que leva os órgãos da grande imprensa a criticarem o presidente em várias questões, posturas, comportamentos, entre outras, mas sem nenhuma crítica à política econômica e seus operadores. Nem uma palavra contrária a Paulo Guedes e o que encaminha a equipe econômica. Mais um motivo para permanecermos alertas.