A população sem serviços públicos, sem educação, saúde, saneamento…

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Por Vladimir Nepomuceno

A pauta em debate em diversos países é necessariamente a reestruturação pós-pandemia, principalmente onde o gráfico de acompanhamento mostra a queda de casos e o controle da covid-19. Governos e sociedade debatem a necessidade da presença do Estado após a pandemia, com ênfase em alguns pontos. O primeiro e mais urgente é a prestação de serviços básicos à população, com destaque para a saúde, com fisioterapias de recuperação, tratamentos das sequelas e de comorbidades como cardiopatias, diabetes, demais doenças respiratórias, entre outras. Discute-se também o necessário investimento em saúde preventiva, visto os alertas para novas ondas do mesmo vírus, ou novas pandemias. Além da saúde, outros serviços, como educação, saneamento, mobilidade, segurança, por exemplo, também merecem tratamento urgente. Um outro ponto em debate é o papel do Estado e a necessidade de fortalecimento da sua estrutura, visando a recuperação do desenvolvimento social e econômico dos países. Ficou claro durante a pandemia que onde havia (e há) sistemas de saúde universais e gratuitos o combate e o controle da pandemia se deu de forma mais efetiva. A presença do Estado e a sua importância no processo de recuperação é fundamental, o que justifica ser o tema central a ser tratado. E dentro dessa discussão está, naturalmente, o papel da administração pública e do servidor público, que é quem opera a máquina do Estado.

No Brasil de hoje, governado e dirigido por mentes tão achatadas quanto o planeta em que imaginam viver, não é bem assim. A neurose obsessiva dos defensores do projeto neoliberal os faz investirem todas as forças na destruição do Estado com a consequente concentração de poder no sistema financeiro, pouco importando se o projeto que defendem deu errado em todo lugar onde foi aplicado, sendo revertido, ou abandonado. Os prejuízos econômicos, sociais e políticos onde foi feito o que se pretende fazer no Brasil foram gigantescos e pagos com o sofrimento da população. Mas a equipe do Ministério da Economia está ciente e concorda com esse projeto. Como exemplo, cito a fala do Assessor da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia, Felipe Aguiar de Barros, em um debate que participei, na Comissão de Direitos Humanos e Cidadania do Senado, em 2019, que, ao ouvir que as propostas do governo eram neoliberais, disse que a equipe concorda com o Ministro Paulo Guedes e, assim como ele, acredita nas teses da Universidade de Chicago defendidas por ele. Teses que, obviamente, o grupo, incluindo seu chefe, não considera ultrapassadas, contrariando o discurso atual da mesma universidade.

Desde a decretação do estado de Calamidade Pública no Brasil, o pouco que foi feito, a contragosto do governo, para atender as mínimas necessidades da população durante a pandemia só foi possível com recursos livres das amarras de um teto de gastos públicos único no mundo, de um falso equilíbrio fiscal, de uma lei de responsabilidade (ou restrição) fiscal. Todos pontos impostos por uma visão neoliberal. Ainda assim, mesmo com o país vivendo a pior crise sanitária e econômica da história, o governo brasileiro dificultou, e ainda dificulta, ao máximo o socorro à parte mais necessitada da população, além dos micros, pequenos e médios empresários, que são os que mais empregam no país. Enquanto isso, a elite brasileira, que vê a crise sanitária se afastar dos bairros das classes mais altas em direção aos bairros mais pobres e às periferias das zonas urbanas, a mesma elite conservadora, responsável pela eleição e manutenção do atual governo até aqui, mostra que tem uma visão muito diferente do resto do mundo e igual à do atual governo. Isso está nítido na pressão pela total revogação das medidas de afastamento social imposta no início da crise, forçando através de seus representantes prefeitos e governadores a jogarem a população necessitada à exposição do vírus.

Como em todo o mundo, está mais do que claro que, após o período de calamidade pública no Brasil, dificilmente o país emergirá da grave crise econômica em que se encontra – e que já estava instalada mesmo antes da pandemia, sem o Estado cumprir seu papel de responsável pela retomada do desenvolvimento, tanto público quanto privado. Após a pandemia as carências e necessidades da população serão exponencialmente maiores do que há três meses e meio, o que já não era pouco. É necessário suspender e até reverter propostas e projetos apresentados, muitos já implantados a partir de 2016 com Temer e reforçados no atual governo. No entanto, o que se vê é exatamente o contrário. Para o atual governo e os que o sustentam, a pandemia é um período de pausa para revisar (para pior) projetos e propostas que, segundo eles, serão retomadas com toda força tão logo o país volte à “normalidade” de antes da pandemia. Enquanto revisam seus projetos vai se passando um boizinho aqui, outro ali. E isso com a conivência da imprensa que, não podemos esquecer, tem parcela gigantesca de culpa na existência desse governo e muito interesse em seus projetos.

O que se vê é que o governo busca aproveitar o distanciamento causado pela pandemia, mais o adiamento das eleições municipais, para avançar na pauta das reformas. Enquanto Guedes participa de sucessivas reuniões remotas com parlamentares e empresários, anunciando o que não sabe se entrega, mas estimulando a plateia. Ele também cuida da coordenação das negociações com o Centrão, enquanto sua equipe segue colaborando com subsídios (nos dois sentidos) à bancada reformista no Congresso. Em todos os eventos a base do discurso de Guedes e seus asseclas é a mesma: reformas (des)estruturantes. Os planos que o ministro diz serem para alavancar o crescimento da economia nacional e o desenvolvimento do país são os mesmos que ele defendeu há quatro décadas ao sair da universidade de Chicago para ser terceiro escalão no governo do ditador Pinochet, no Chile. Os mesmos planos que resultaram naquele país em destruição do serviço público, como a privatização do sistema previdenciário, que quarenta anos depois deixou na miséria boa parte do povo chileno, além da inexistência de saúde pública, da privatização do ensino, com cobrança de mensalidades nas universidades públicas, do saneamento básico privatizado (que remete a algo muito recente aqui no Brasil) e do gigantesco enriquecimento do sistema financeiro internacional às custas do sofrimento do povo. Esse o objetivo.

Em evento remoto promovido pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib) na sexta-feira, 3, Paulo Guedes afirmou que o fundo do poço da economia já passou. Disse também que “o presidente está determinado a prosseguir com as reformas e o Congresso é reformista”. Bom, quanto ao Congresso, não há dúvidas se analisarmos a correlação de forças. Mas há resistência no Legislativo.

No mesmo evento, o ministro discordou quanto a aumentar o investimento público na recuperação da economia, dizendo que “tudo bem” se os investimentos forem “moderados”. Guedes defende que o que pode tirar o Brasil da crise são os investimentos e empregos privados e diz que a solução para isso são o Renda Brasil, a Carteira Verde Amarela, a privatização do saneamento básico (já aprovada), do gás natural, da cabotagem, do petróleo, do setor elétrico, além de outras concessões e privatizações. Segundo o ministro, essa seria a pauta para os próximos 60 dias. Guedes diz que a privatização do saneamento “foi só o começo”, e que o Brasil vai “surpreender o mundo”. O ministro, diferente do que é discutido em outros países, diz acreditar que investimentos estrangeiros em infraestrutura virão, bastando que paguem menos outorgas e investindo no futuro (de quem ele não disse).

Segundo Guedes, a reforma tributária está pronta, faltando apenas o acordo político. A reforma que propõe a redução de impostos sobre a folha, como parte da “queda de impostos sobre empresas”, a “simplificação de impostos”, mas sem nenhuma menção quanto a taxar grandes fortunas, tributação de lucros e dividendos, a real progressividade de impostos, por exemplo. A ideia é que a proposta seja encaminhada ao Congresso em agosto. Um detalhe, o governo avalia fazer com a reforma tributária como fez com as três PECs do Plano Mais Brasil que, driblando a Constituição Federal, que determina que as proposições do Executivo devam ser protocoladas na Câmara dos Deputados, deram entrada no Congresso através do Senado, amplamente favorável às reformas. Se levarmos em consideração que 50% dos senadores são empresários e que 30% se apresentam como profissionais liberais, entendemos a opção pela Casa e podemos imaginar que tipo de negociações devem resultar no tal acordo político.

Ainda nesse evento, chamou atenção a afirmação do ministro que, diferente do que disse o presidente Bolsonaro, garantiu que “a reforma administrativa continua na pauta e que a equipe voltará a esse tema ainda neste governo”. Ele não quis se comprometer com o prazo, até porque seria difícil acordo para votação em ano eleitoral.

Por falar em eleições, com o adiamento do processo eleitoral e não tendo o recesso de meio de ano, as atividades no Congresso devem seguir até o início de outubro. Aproveitando esse tempo os parlamentares defensores das reformas pretendem avançar nas discussões sobre o tema. Na semana passada, a Frente Parlamentar da Reforma Administrativa, composta por 12 deputados e 2 senadores, realizou quatro debates virtuais entre os dias 30 de junho e 2 de julho. No primeiro, o tema foi “Modernização do Estado: desburocratização e gestão para eficiência”. O segundo, tratou do tema “O impacto da Reforma Administrativa nos estados e nos municípios”, o terceiro discutiu “Engajamento e valorização do servidor público” e, por fim, o quarto debate tratou de “Seleção e carreira de líderes no serviço público”. Esse último tema coincide com a vigência da instrução normativa do Ministério da Economia que dificulta a realização de concursos públicos, com o anúncio de um possível projeto de lei para dar substituir a medida provisória 922/20, que ampliava a contratação de temporários para a administração pública, que perdeu a validade no último dia 29. Coincide também com o anúncio pelo Ministério da Economia, do programa “LideraGov”, que “identificará novas lideranças e treinará servidores por meio de cursos para altos executivos.”

O presidente da Frente Parlamentar, deputado Tiago Mitraud (Novo/MG), alega ser necessário “desideologizar o debate”, como se o coletivo, presidido por ele, membro de um partido assumidamente neoliberal, não usasse de ideologia ao defender sua proposta de reforma. É obvio que o lançamento dessa frente tem o claro objetivo facilitar a tramitação vista por muitos como difícil, tendo em vista a organização e a mobilização dos servidores públicos.

Não é difícil ligar os pontos. O ministro Guedes se transforma em articulador e negociador do governo com o Centrão e coletor de apoio empresarial (como se fosse necessário). Enquanto isso, é criada uma frente parlamentar para defender a reforma administrativa dentro do Congresso, garantindo a aprovação da reforma. O objetivo é usar o tempo disponível deste ano para avançar o máximo na cooptação de votos no Congresso e de apoios, com campanhas de mídia falando mal do serviço público e dos servidores, para logo no início do próximo ano pôr em votação a proposta sem muita resistência.

Se não for impedido, o ministro operador das reformas neoliberais deixará o povo sem saúde pública, cuja importância no combate à pandemia ficou nítida, sem educação pública e gratuita em todos os níveis, com a criação da cobrança de mensalidade nas instituições públicas de ensino, sem assistência social, além do fim das políticas de inclusão. O país ficará sem investimento em pesquisa, cuja necessidade e importância também ficaram claras durante a pandemia, sem desenvolvimento social e tecnológico, necessários à soberania de um país. O saneamento básico mais caro deixará uma maior parcela da população sem cobertura de água e esgoto, assim como a distribuição de energia elétrica, do transporte público (que são concessões, mas podem deixar de ser). Em resumo, será o aumento da miséria e da pobreza da população e, entre outras consequências, o aumento da carestia e da violência.

Na postagem anterior mencionei que a proposta do ministro Guedes, o programa “Renda Brasil”, se fosse sério, necessitaria de um amplo debate na sociedade, dada a complexidade do assunto, além de muito estudo e que não poderia ser confundida com o voucher neoliberal sugerido por Milton Friedman em 1955. Pois é exatamente o que pretende o ministro da Economia, segundo matéria do jornal O Globo, sábado, 4 de julho de 2020. Uma “novidade” de 65 anos. Guedes pretende criar, um voucher (vale) no valor de R$ 250 mensais, incluído no programa Renda Brasil, que pretende substituir o Bolsa Família. Na proposta desaparece o investimento em creches públicas (dito abertamente na matéria), levando as crianças para instituições já existentes no mercado privado, incluindo filantrópicas e até igrejas. A informação foi confirmada por técnicos do governo aos jornais O Estado de São Paulo e O Globo. O resultado disso não é difícil de ver. É o fim da educação pública, autônoma, independente e laica na educação infantil. Ao contrário do dito pelo governo, não serão as famílias que escolherão as creches, mas o contrário. Quanto aos servidores da educação infantil, assim como os dos ensinos fundamental, médio e superior em todas as esferas governamentais? Bom, esses perderão gradativamente seus locais de trabalho, ou mudarão a forma de contratação.

Quando o governo fala em reforma administrativa, o foco inicial é o servidor. É nele que é ancorada a campanha de que o serviço não é bom por sua culpa, pelos seus “altos” salários, que a morosidade tem a ver com estabilidade que criou acomodados, entre outra infames e mentirosas acusações. Nessa proposta, redução de remuneração, de jornada, de direitos, a quebra da estabilidade, a flexibilização na forma de contratação, entre outras questões, tem o objetivo de redução drástica e progressiva da força de trabalho no serviço público. Para isso é fundamental contar com o apoio da sociedade, fazendo-a ver no servidor o vilão. Junto a isso a campanha de que o que é público não funciona, e pronto. Está aí o objetivo final: usar os servidores como lenha na queima do serviço público, na eliminação da estrutura pública de atendimento à população. Com as mudanças na legislação que estão sendo encaminhadas, logo teremos aqui o que nossos vizinhos chilenos viveram nos últimos 40 anos. Mas o sistema financeiro vai lucrar e é isso que quer Guedes.

Em todos os eventos que participei antes da quarentena defendi que o movimento em defesa do serviço público fosse feito por dentro do serviço, na defesa do servidor, mas com o olhar para fora, para a sociedade, o público que depende dos serviços públicos em todas as áreas, nos três Poderes e nas três esferas de governo. De uma forma ou de outra todos, servidores ou não, dependemos do serviço público e gratuito. O mesmo serviço que, caso não seja parado esse governo, poderá ser extinto ou privatizado. Os servidores ficam sem emprego, a população sem serviços públicos, sem educação, saúde, saneamento…
Termino com a citação a uma postagem do blog do professor José Luis Oreiro, intitulada “A apresentação Power Point que o Posto Ipiranga quer Esconder”. Na postagem, o professor Oreiro disponibiliza o link para uma apresentação do ministro da Economia que deixa claro o que pensa e pretende Guedes com o Estado brasileiro. A apresentação tinha sido retirada da página do Ministério da Economia, porém, um dos leitores do blog do professor Oreiro que havia conseguido salvar, repassando ao professor. Aqui faço questão de também disponibilizar, pegando uma carona no blog do professor Oreiro, que maravilhosamente qualifica de “pérola do pensamento Chicagão:  A reconstrução do estado – SEDDM (20.06.20)