Os novos “servidores” após a Reforma Administrativa, quem são?

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Por Vladimir Nepomuceno

Várias pessoas perguntam quem serão os novos contratados para trabalhar na, ou para a, administração pública caso a reforma apresentada pelo governo federal ao Congresso seja aprovada como está. Quais as relações desses novos “funcionários públicos” com a administração e como será a relação dos novos com os que já estão na administração pública são outras de tantas perguntas. As dúvidas são naturais. Afinal, o que propõe a PEC 32/2020 é algo totalmente diferente do que temos hoje, algo novo, ou nem tanto.

Desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, que completou 32 anos no último dia 5 de outubro já com 108 emendas aprovadas e outras tantas em tramitação que pretendem desfigurar ainda mais a Constituição, que os derrotados no debate constituinte no que se refere a direitos sociais e uma maior atenção à parte mais carente da população, buscam recuperar o rumo de seus objetivos. E esse processo de retrocesso vem gradativamente evoluindo na direção de redução dos direitos, incluindo a desestruturação da administração pública, dividindo seu espólio entre neoliberais e patrimonialistas, tornando a máquina pública mínima restante garroteada, cumpridora estrita das ordens de seus mandantes de plantão. E essa é uma das formas de deixar de atender as necessidades do povo.

Em relação aos servidores, a partir da vigência da Constituição, foi iniciado um processo de construção de quadros funcionais nos entes e órgãos públicos compostos de carreiras estruturadas, planos de cargos e de carreiras, ou até cargos isolados em situações especiais. Todos ocupados por pessoas aprovadas em concursos de provas teóricas e práticas (quando necessário), apresentação de títulos (também quando necessário), além de testes de capacidade física em alguns casos. Todos também sob normas decorrentes dos respectivos artigos constitucionais e de seus regimes jurídicos próprios, conhecidos como estatutos dos servidores públicos, abrangendo todo o conjunto de servidores efetivos e cargos de livre provimento, em cada ente da Federação, com seus direitos, deveres, obrigações e limites. Nesse mesmo processo foi definido em que condições excepcionais seria permitida a contratação de trabalhadores temporários e como se daria a ocupação de cargos de livre provimento de direção e assessoria. E o que propõe a chamada “Reforma Administrativa”?

Como dito no meu artigo “As consequências da ‘reforma administrativa’ para a sociedade” (leia aqui), essa chamada “reforma” na verdade nada tem de administrativa. Esta é mais uma etapa, dividida em três fases, da reforma do Estado brasileiro. Mais uma tentativa de retornar ao que era a administração pública antes da aprovação da atual Constituição Federal, em 1988. Uma rápida observação: é, no mínimo, interessante, para não chamar de ridículo, criticar o texto constitucional de pouco mais de três décadas, chamando-o de ultrapassado, querendo implantar algo parecido com o que havia no Brasil há quase um século, chamando de “moderno”, como veremos a seguir.

As novas formas de relação de trabalho com o Estado

A primeira questão a ser considerada é que o atual Regime Jurídico dos servidores públicos, ocupantes de cargos efetivos e de cargos e funções comissionadas, deixará de existir logo após a promulgação da Emenda Constitucional, se aprovada a PEC 32/20. Os atuais servidores serão divididos em dois grupos. Uma pequena parte terá seus cargos transformados em “cargos típicos de Estado”, num novo formato e com novo regime jurídico, enquanto a outra parte, a maior, também terá a sua relação com o Estado regulada por um novo regime jurídico específico, que deverá durar até o desligamento do último servidor, seja por aposentadoria, morte, demissão ou desligamento voluntário. Isso porque após a reforma não haverá mais ingressos para os cargos atuais. (veja como ficam os atuais servidores no artigo “Os atuais servidores e a Reforma Administrativa” – veja aqui). Da mesma forma, os que vierem a ser aprovados em qualquer processo seletivo a partir do proposto pela PEC 32/20, seja concurso público ou processo de seleção simplificada, terão também novas formas de relação com a administração pública, definidas em legislação a ser criada.

Os novos ingressantes na administração pública se dividirão em “cargos” e “vínculos”. Situação, no mínimo, estranha. Isso porque haverá (se aprovada a PEC 32/20 como está) uma confusão de conceitos e de definições, uma vez que em mais de um momento as atribuições e responsabilidades poderão se sobrepor e confundir, como veremos mais adiante. Vejamos de quem estamos falando, os futuros contratados.

A proposta para as novas relações de trabalho entre as pessoas e o Estado, nos três Poderes e nas três esferas de governo, são as seguintes:

Cargos (2)

I – Típicos de Estado – representam uma muito pequena parte do quadro efetivo da administração pública. São cargos destinados às atividades exclusivamente públicas, típicas de Estado.

Ingresso – por concurso público em duas etapas:

– Primeira etapa: provas ou provas e títulos, a depender do cargo;

– Segunda etapa: cumprimento de período de, no mínimo, dois anos em vínculo de experiência com desempenho satisfatório (pode ser mais tempo. O ministro Paulo Guedes, por exemplo, defende que para alguns cargos esse período possa chegar a cinco ou mais anos), condicionado a:

Classificação final dentro da quantidade prevista de vagas no edital do concurso público entre os mais bem avaliados ao final do período do vínculo de experiência. Nesse processo serão convocados para o período de experiência um número superior à quantidade de vagas disponíveis, constantes de edital;

Após o término do vínculo de experiência, o servidor “efetivado” somente adquirirá estabilidade se for considerado com desempenho satisfatório pelo prazo de mais um ano de exercício (estágio probatório), sendo, somente a partir de então, definitivamente incorporado ao quadro. Caso não seja avaliado com desempenho satisfatório, o “servidor” pode ser dispensado ao final desse ano, devendo haver a convocação do primeiro classificado entre os excedentes do vínculo de experiência correspondente.

Estabilidade – O servidor adquire estabilidade como dito acima, podendo perder e ser desligado do serviço público em três condições: I – decisão judicial; II – processo administrativo disciplinar e III – avaliação de desempenho insuficiente.

Algumas observações:

1 – Em caso de demissão por decisão judicial, até o presente momento é necessário que essa decisão transite em julgado. Se aprovada a PEC, bastará uma decisão por órgão judicial colegiado. Ainda que possa haver reversão ao fim do processo. Essa nova situação atingirá também os atuais servidores;

2 – A regulamentação da demissão por desempenho insuficiente, prevista hoje na Constituição Federal através de lei complementar, passaria a ser regulamentada por lei ordinária. Dessa forma, a aprovação da respectiva lei passa a ser por maioria simples dos presentes em plenário, quórum bem menor que a maioria absoluta dos votos necessários no caso de lei complementar. Além de que serão leis por ente federado (estados e municípios).

3 – Além das três formas citadas, existe ainda a possibilidade de demissão de servidões públicos com base nas limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, prevista no artigo 169, parágrafo 4º, da Constituição Federal. No entanto, a PEC 32/20 mantém, inclusive  com restrição, que as leis previstas para regulamentar a perda do cargo por insuficiência de desempenho e as normas gerais que permitem o desligamento de servidor efetivo com base nas limitações da Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 247, da CF), estabeleçam “critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público investido em cargo típico de Estado” (grifo meu).

Assim, os critérios e garantias especiais passam a ser vinculados aos cargos típicos de Estado, não mais ao exercício de atividades exclusivas de Estado, como diz o artigo 247 da Constituição Federal na atual redação. Dessa forma, ainda que determinado cargo contemplado em lei futura como típico de Estado, mas que, em suas atribuições, não exerça atividade exclusiva de Estado, teria a proteção dos “critérios e garantias especiais” propostos na PEC 32/20. O que significa, também, que o inverso pode ocorrer, quando ocupante de um cargo não listado na referida lei futura, mas que possa desenvolver, por força de suas atribuições, atividade exclusiva de Estado, não teria a mesma proteção.

Também não podemos esquecer que estão tramitando, e com pressão para agilização na tramitação, as PECs 186/19 (emergencial) e 188/19 (pacto federativo), onde os servidores públicos dos três poderes e das três esferas de governo correm riscos de redução de jornada com redução proporcional de remuneração e até de demissão para cumprimento de limites fiscais. No entanto, no texto da PEC 32/20 diz que “é vedada a redução da jornada e da remuneração para os cargos típicos de Estado”. Mais uma proteção, deixando os demais trabalhadores a serem contratados pelos novos vínculos e os atuais servidores expostos às intempéries da política fiscal de governos.

Acumulação de cargos – Para os ocupantes de cargos típicos de Estado é permitida a acumulação com outra atividade remunerada (não apenas cargos públicos), desde que sejam atividades de docência ou de profissão regulamentada de saúde, havendo compatibilidade de horários (o texto é omisso em relação a conflito de interesses).

O que se pode depreender da proposta é a criação de uma casta (mais uma) no serviço público, com mais proteção e garantias do que os atuais ocupantes de cargos e carreiras que exercem as mesmas atividades exclusivas de Estado a serem contempladas na nova legislação. Muito diferente também dos demais servidores, novos e atuais, que veem seus direitos e garantias serem sumariamente desmontados, como se fossem privilégios. Não custa lembrar que o ministro da Economia, Paulo Guedes, em evento recente, deixou clara a sua opinião de que a elite do funcionalismo (que ganha valores próximos, iguais ou superiores ao teto constitucional) ainda ganham pouco e precisam ser mais protegidos.

II – Cargos por prazo indeterminado – É a grande maioria do quadro efetivo. Serão os substitutos dos atuais servidores. São cargos destinados às atividades administrativas, técnicas ou especializadas que são contínuas e não são exclusivas de estado.

Ingresso – por concurso público em duas etapas (cabe esclarecer que algumas pessoas têm confundido, achando que esses cargos também seriam por processo simplificado, o que não é o proposto):

Primeira etapa: provas ou provas e títulos;

Segunda etapa: cumprimento de período de, no mínimo, um ano em vínculo de experiência com desempenho satisfatório (pode ser mais tempo, como o cargo típico de Estado), condicionado a:

Classificação final dentro da quantidade de vagas prevista no edital do concurso público entre os mais bem avaliados ao final do período do vínculo de experiência. Nesse processo serão convocados para o período de experiência um número superior à quantidade de vagas disponíveis, constantes de edital. Diferente dos cargos típicos de Estado, não há o período de avaliação de um ano posterior ao vínculo de experiência (estágio probatório), uma vez que esses cargos não fazem jus a estabilidade.

Os ocupantes de cargos por prazo indeterminado, como diz a identificação do cargo, não terão definição de prazo na relação com o Estado empregador, podendo ser desligado a qualquer momento, seja com base em avaliação de desempenho, onde a administração pública poderá argumentar a “evolução tecnológica”, se “a função realizada ainda faz sentido na administração pública”, entre outras justificativas. Durante a apresentação da proposta de reforma os representantes do Ministério da Economia utilizaram o termo “obsolescência” para justificar que aquele cargo estaria descartado (descartável é, desde a posse). Considerando a possibilidade de entrega de unidades, ou mesmo órgãos inteiros e atividades a instituições privadas, através de organizações sociais e outros modelos, a instituição privada pode aceitar ou não os servidores como cedidos. Em caso de não aceitação ou devolução os servidores ocupantes de cargos por prazo indeterminado podem ser realocados em outra unidade ou órgão, ou simplesmente desligados da administração pública. “Isso é a obsolescência” dita na apresentação da reforma. As hipóteses de desligamento de ocupantes de cargos por prazo indeterminado serão definidas em lei a ser aprovada.

Em relação ao regime de trabalho para os cargos por prazo indeterminado, já está decidido que não será utilizado o da CLT, mas um novo regime específico de servidor sem estabilidade. Destaca-se que não há, até o momento, proposta de criação de algum tipo de verba indenizatória em caso de desligamento, algo como o FGTS dos celetistas. Uma vez questionados, representantes do governo dizem “estarem pensando em algo do tipo”. Devemos observar que a PEC 32/20 permite que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios possam optar, no prazo de até dois anos após a promulgação da nova Emenda Constitucional, por vincular os servidores que vierem a ser admitidos para cargo com por prazo indeterminado, inclusive durante o vínculo de experiência, ao regime geral de previdência social, em caráter irretratável, obviamente perdendo o direito ao regime próprio de previdência mencionado no artigo 40-A da PEC 32/20.

Acumulação de cargos – Para os ocupantes de cargos por prazo indeterminado é autorizada a acumulação remunerada de cargos públicos, quando houver compatibilidade de horários e não houver conflito de interesse. Diferente dos cargos típicos de Estado, como visto acima, e dos atuais servidores.

Com a manutenção da política de teto de gastos, a possibilidade de desligamento com base na Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 247, da CF) mais a possibilidade de aprovação das PECs 186 e 188, permitindo a redução de jornada com redução de salário e o desligamento, além das propostas da PEC 32/20, que facilitam a entrega de serviços públicos à iniciativa privada, esses são os cargos com maior instabilidade e incerteza, o que, obviamente, favorece o assédio institucional e a pressão política.

Aqui, repriso um parágrafo do meu artigo “Os atuais servidores e a Reforma Administrativa”, que tem a ver com os futuros cargos por prazo indeterminado:

“Está em discussão entre a equipe de governo responsável pela PEC 32/2020 e “especialistas convidados a opinar”, a criação de um órgão independente (no formato de agência reguladora), composto por representantes da administração pública e da sociedade civil. Esse novo órgão, que deverá ser criado na esfera federal, nos estados, no Distrito Federal e nos municípios, trataria dos critérios de avaliação de desempenho, reajustes remuneratórios, premiações, realocação de servidores devolvidos por instituição que assuma as atividades, entre outros pontos. No caso federal, por exemplo, esse órgão seria presidido por uma pessoa indicada pelo presidente e aprovado pelo Congresso. O que deverá ser sugerido como modelo aos entes da Federação. Nenhuma menção à presença de especialistas em gestão de pessoas.”

“Vínculos” (3)

I – Vínculo por prazo determinado – Como diz a nomenclatura, não são cargos públicos. Os ocupantes desses vínculos serão contratados para lidar com necessidades temporárias, com tempo de vínculo previamente estabelecido. Após o término do período, o profissional deixará os quadros da Administração Pública.

Ingresso – por processo seletivo simplificado.

Atualmente a legislação permite a contratação de pessoal temporário para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público. Enquadram-se nessa situação assistência a situações de calamidade pública, assistência a emergências em saúde pública, recenseamentos, entre outras já especificadas em lei, todas realmente excepcionais.

Na PEC 32/20, além da temporariedade de situações com as citadas acima, como calamidade e emergência, estão atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal e os principais objetivos da alteração em relação a atual legislação, entre os quais podemos citar atividades ou procedimentos sob demanda, acúmulo transitório de serviço e, nada mais óbvio numa proposta neoliberal, a substituição de servidores por paralisação de atividades essenciais, como greves. Em relação ao último item, cabe lembrar que está previsto na terceira fase da reforma a definição de direitos e deveres dos servidores, onde muito provavelmente estarão uma lei de greve específica para o funcionalismo e um novo código de conduta, ambos altamente restritivos, podendo considerar praticamente todo o serviço público como atividade essencial para efeitos de greve. Lógico que para outros efeitos o serviço público nunca será essencial aos olhos dos neoliberais.

A partir da PEC 32/20, a contratação temporária passa a considerar a natureza da demanda, não mais do tipo de aplicação de contratação. Observa-se também a possibilidade de, através de contratos de gestão, órgãos e entidades da administração pública poderem indefinidamente fazer uso de contratos de vínculo por prazo determinado em substituição a servidores concursados.  Em outras palavras, passa a ser possível a contratação temporária praticamente indefinida, podendo dispensar a realização de concurso, utilizando de mão de obra de baixíssimo custo, incluindo encargos trabalhistas.

Considerando o já mencionado neste texto, sobre a sobreposição de atuações em uma mesma atividade de servidores concursados e de cargos de liderança e assessoramento, podemos somar a isso a presença do trabalhador temporário como o terceiro personagem exercendo as mesmas atividades. Mais irregularidade impossível.  Seria, por exemplo, a manutenção de pessoal temporário no atendimento do INSS, junto com servidores atuais, mais os novos por prazo indeterminado, além dos ocupantes de cargos de liderança e assessoramento. Nada define esse absurdo de forma mais clara do que a defesa dos temporários pelo ministro Paulo Guedes: a contratação de servidores temporários, com salários mais baixos – e menos concursos públicos.

II – Cargos de liderança e assessoramento – serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas, substituindo os atuais as funções de confiança, os cargos em comissão de direção e assessoramento, além de muitas vezes exercerem atividades de forma concomitante com servidores concursados, o que até hoje não é permitido.

Ingresso – por processo seletivo simplificado.

De início, já podemos dizer que esse “processo simplificado” é, no mínimo, preocupante, uma vez que será o “chefe de cada Poder” que definirá “os critérios mínimos de acesso aos cargos de liderança e assessoramento… e sobre a sua exoneração”. Considerando que o artigo 37 proposto pela PEC 32/20, onde consta essa proposta, trata das três esferas de governo, podemos dizer que o parágrafo em questão, na prática, deixa claro que poderemos ter milhares de critérios diferentes de acesso e de exoneração dos cargos em questão. Não é difícil ver nesse texto a institucionalização do apadrinhamento e da indicação política. Proposta que, além de não apresentar qualquer base mínima de exigência e de critérios técnicos, ainda ofende a Constituição Federal ao incluir tal aberração em seu texto.

No momento da apresentação da PEC 32/20 os representantes do Ministério da Economia deixaram claro que esses novos “cargos”, que substituirão gradativamente os cargos comissionados e funções gratificadas existentes, terão uma divisão interna, que os colocará como de primeira e de segunda classe. Os de primeira classe, considerados “cargos estratégicos” dos níveis mais altos da administração, como o de secretários, bem como os de assessoramento, serão de livre nomeação e exoneração (como já é atualmente). Para estes, a seleção simplificada não é requisito obrigatório. Já uma outra parte (a maior) dos cargos de liderança e assessoramento será ocupada através de processo de seleção simplificada. Óbvio está que, a partir do momento em que “os órgãos devem seguir os critérios estabelecidos por cada Ente ou Poder”, como diz o Ministério da Economia, podemos imaginar o que veremos em um país com 5.570 municípios, 26 estados, 1 Distrito Federal, mais a União com seus três Poderes. Corremos o risco de assistir a uma gigantesca farra de indicações políticas de todo jeito, uma vez que cada ente ou Poder definirá em regras próprias a ocupação desses cargos. Aliás, essa é uma das bases da reforma administrativa, o aparelhamento político, juntamente com a secundarização do público em relação ao privado, permitindo a assunção de representantes do setor privado em áreas estratégicas do Estado.

Na página do Ministério da Economia na Internet está dito que os cargos propostos de liderança e assessoramento “serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas”, como mencionado acima. Além de deturpar a ideia do que seria um cargo em comissão de livre nomeação e exoneração ou uma função de confiança, a redação proposta para o inciso V, do artigo 37 da Constituição Federal, também traz mais problemas:

1º – permite o exercício de uma mesma atividade por ocupantes de cargo efetivo, aprovados em concurso e por nomeados a partir de processo seletivo simplificado, que não passaram por concurso. Isso, além dos atuais servidores que estarão nas atividades técnicas. Uma questão que fica é: qual a responsabilidade de cada um em atividades que exigem perfil técnico, por exemplo?

2º – no mesmo inciso V, a PEC 32/20 propõe eliminar a previsão constitucional de que lei trataria dos casos, condições e percentuais mínimos para funções de confiança, a serem exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo destinados a atribuições de direção, chefia e assessoramento.

Incialmente quero esclarecer que, apesar de algumas afirmações, a atual redação constitucional não reserva determinados cargos de gerenciamento e de direção com perfil técnico para servidores efetivos. Essa reserva se dá por percentuais gerais. Por exemplo, durante a gestão do então ministro Paulo Bernardo no antigo Ministério do Planejamento, onde se localizava o órgão central de pessoal do Executivo federal, foi editado o decreto nº 5.497/2005, do presidente da república, que determinava que 75% dos cargos em comissão de Direção e Assessoramento Superiores – DAS, de níveis 1, 2 e 3, de perfil mais técnico, deveriam ser ocupados por servidores de carreira e que os mesmos servidores deveriam ocupar 50% dos cargos em comissão DAS, níveis 4, 5 e 6, de perfil gerencial e de direção mais elevado, em números gerais, sem discriminar cargos. Posteriormente, em 2017, o decreto nº 9.021/2017, alterou esses percentuais para 50% dos cargos em comissão de níveis 1, 2, 3 e 4, para servidores de carreira e de 70% dos cargos de níveis 5 e 6 para os mesmos servidores.

A proposta apresentada, ao permitir a ocupação indiscriminada de cargos de chefia, gerenciamento, direção e de assessoramento por pessoas não aprovadas em concurso público, abre mão da qualificação e da experiência de servidores efetivos, o que pode simplesmente comprometer o resultado do serviço prestado do ponto de vista técnico e legal. Um outro destaque é que, independente de percentuais, em ambos decretos constava (e ainda consta, uma vez que o decreto de 2017 segue em vigor) a determinação de inclusão pelos órgãos de ações voltadas a habilitação de seus servidores para o exercício de cargos de direção e assessoramento superiores em seus planos de capacitação.

O posicionamento do governo em apresentar a “porteira aberta” para não concursados, libera todas as direções, gerências, chefias e cargos de assessoramento para a ocupação por pessoas não necessariamente preparadas tecnicamente para o exercício. E isso, infelizmente, não é por acaso.

Acumulação de cargos – Os cargos de liderança e assessoramento estão liberados para a acumulação de cargos públicos, quando houver compatibilidade de horários e não houver conflito de interesse, assim como estão entre as exceções quanto à percepção simultânea de proventos de aposentadoria com a remuneração do cargo. E, desde que admitido exclusivamente para esse cargo, serão considerados segurados do Regime Geral de Previdência Social para fins previdenciários.

O direito à acumulação para os ocupantes de cargos de liderança e assessoramento com cargos públicos, sem a existência de critérios como é atualmente, permitirá a cooptação de servidores a partir de critério meramente políticos, sendo mais um ponto na forma patrimonialista de gestão pública.

III – Vínculo de Experiência – Na verdade, apesar da denominação “vínculo”, se trata apenas da segunda etapa de concursos públicos para cargos típicos de Estado ou cargos por prazo indeterminado. Isso, aliás, está dito em documento oficial, constando do sítio do Ministério da Economia e da apresentação da PEC por aquele ministério, denominado “Perguntas Frequentes”. No documento, está dito, em relação aos concursos que “Depois de aprovados na primeira etapa da seleção, ainda como etapa do concurso público, os interessados (grifo meu) passarão por um período de formação e avaliação prática de 1 a 2 anos, chamado de vínculo de experiência.” Na minha opinião, o termo utilizado não deixa dúvidas quanto a ser esse período apenas uma etapa de concurso público.

Entendo também a denominação “vínculo de experiência”, sendo apresentada pelo governo como se fosse uma das novas formas de relação de trabalho com o Estado, uma espécie de aprendiz, como equivocada. Isso porque na PEC 32/20 está claro que a relação entre o “ocupante” desse “vínculo” e a administração pública desaparece ao fim de período pré determinado. Exatamente o que acontece após uma segunda etapa de concurso público, como mencionado acima.

Seja pelo simples desligamento sem nenhuma garantia ou verba indenizatória até aqui mencionada, seja pela efetivação em um dos cargos pretendidos através do concurso feito, alterando a relação, para, aí sim, ser constituído um vínculo, penso que o período de “experiência” é, na melhor das hipóteses, uma relação precária. Até porque não é considerada a existência de vínculo com a administração pública durante as etapas de um concurso público.

Como já dito também, chama atenção a total ausência de informação do governo quanto a possíveis garantias durante o período de experiência, como verbas indenizatórias (transporte, alimentação, por exemplo), como é o caso de estágio, além de férias remuneradas (o “vínculo” pode durar até dois anos). Ainda que não conste da PEC, sendo considerada matéria infraconstitucional, torna-se necessária alguma informação, até porque, enquanto o mesmo governo nada diz sobre o mencionado, faz questão de incluir no texto da PEC 32/20 que, durante a permanência no vínculo de experiência “é vedada a realização de qualquer outra atividade remunerada, inclusive a acumulação de cargos públicos”. Isso, ainda que houvesse compatibilidade de horários e sem conflito de interesses, como no caso de membros do quadro efetivo atual ou futuro, alterando a redação atual do inciso XVI, do artigo 37.

Também nada é dito referente ao tratamento a ser dado ao servidor estável quando aprovado em outro concurso público. Isso, porque atualmente um servidor que for aprovado em concurso público, quando não habilitado ao fim do estágio probatório, tem o direito de retorno ao cargo de origem. Essa dúvida se justifica, uma vez que foi anunciada oficialmente para as próximas etapas da reforma administrativa a revogação da Lei 8.112/1990, que deverá ser substituída por outra norma tratando especificamente dos atuais servidores que permanecerem no quadro, junto com a edição de uma legislação específica para os novos cargos e vínculos.

Pode se depreender também que a forma apresentada de funcionamento do “vínculo de experiência”, convocando um número de candidatos superior ao de vagas constantes de edital (matéria constante da PEC 32/20) e se utilizando dessa mão de obra por período de até dois anos, quando aqueles não considerados aptos a serem incorporados ao quadro efetivo seriam sumariamente desligados sem nenhuma expectativa de alguma garantia, possa ser considerada como exploração irregular de mão de obra barata e descartável, disfarçada de “aprendizes”. O argumento de economia na realização de formação não cabe, bastando observar as normas já existentes para certames em duas etapas, sendo a segunda etapa de formação e eliminatória. O que se vê não me parece, no mínimo, correto e ético, ainda mais em se tratando de administração pública e, pior, de inscrição na Constituição Federal, mais uma vez.

Enfim, qualquer posicionamento favorável a aprovação dessa proposta se torna um tiro no escuro, deixando totalmente inseguras as milhares de pessoas que pretendem um cargo na administração pública.

Algumas observações após o visto até aqui.

Essa proposta de criação de novas formas de contratação na administração pública promete economia para os cofres públicos. Só que ninguém no governo tem os cálculos, as simulações ou as projeções dessa economia. É claro que não haverá resultado se a conta não foi feita. Também é prometida modernidade simplesmente dizendo que irá tornar vários serviços digitais, retirando a força de trabalho humana, entre eles os de duas áreas fundamentais da Seguridade Social que atendem às camadas mais necessitadas da população de média e baixa renda, a Previdência e a Assistência Social. As propostas acima de novas formas de contratação, sem melhorar o atendimento, só farão diminuir e congelar remunerações de servidores e contratados temporários, além da exploração da mão de obra barata dos ocupantes de “vínculos de experiência”. Para essas pessoas, aumento só da insegurança quanto a possibilidade de redução de jornada com redução salarial, congelamento salarial ou da perda do emprego, majoritariamente resultado de pressões políticas, assédio institucional, perseguições a lideranças sindicais, além da presença de indicados políticos em praticamente todos os cargos de chefia e até em atividades-fim, podendo fazer o papel de capataz ou de “capitão-do-mato”.

De resto, algumas falácias, como a possível economia através de contratos de gestão, que, na verdade, podem durar décadas e sangrar os cofres públicos com excesso de contratações de trabalhadores temporários, de bens e de prestadores de serviços. Da mesma forma, não é possível localizar a urgência e “resposta rápida” do Estado, como disse o Secretário-adjunto de Desburocratização do Ministério da Economia, Gleisson Rubin, ao justificar a nova proposta para contratação de temporários, se o que realmente é urgente e excepcional já está há anos muito bem definido em lei. Onde estaria a urgência de contratar temporários para atividades-fim, ignorando o planejamento dos órgãos e as solicitações de concursos públicos, por anos, de gente qualificada, como foi o INSS, que perdeu aproximadamente 40% do seu quadro efetivo por aposentadoria desde 2017? O mesmo órgão que contratou temporários civis e militares e ainda tem uma quantidade superior a 1,5 milhão de processos pendentes de solução para uma população carente e muito necessitada.

Não é difícil perceber a entrega de serviços públicos a patrimonialistas seculares ressuscitados nesse processo de reforma, junto com oportunistas de plantão, enquanto a parte lucrativa vai para os que dividem a pilhagem da administração pública, representados pelos neoliberais do mercado financeiro. Essa é a “modernidade” da reforma administrativa.